Presentes no cotidiano da casa brasileira e reconhecidas como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional – IPHAN, as moringas artesanais têm atravessado gerações estando entre os objetos mais populares no armazenamento de água. De origem incerta, mas presente nas culturas egípcia (3.000 a.C.) mesopotâmica (2.500 a.C.) e indígena-americana desde o período pré-colombiano, elas têm atravessado milênios permanecendo como um objeto utilitário que carrega fortes influências culturais de seus produtores. No Brasil, embora elas sejam encontradas em diversos materiais e regiões do país, elas ganham interpretações distintas a depender dos materiais e influências locais, absorvendo grafismos, pinturas e formatos que remetem à estética da fauna e da flora brasileira.
“É comum que as pessoas associem a produção de moringas à região nordeste, porque é justamente no sertão, com todos os desafios encontrados para o armazenamento de água, que surgem algumas das representações mais emblemáticas de moringas, sobretudo em Tracunhaém (PE), que teve uma produção emblemática com peças antropomórficas. Mas fazendo um recorte no que tem sido produzido hoje – unido a tradição do feito à mão ao design – os estados de Minas Gerais e Bahia têm se destacado por sua capacidade de refletir as culturas de suas regiões a partir do barro, da pedra sabão, entre outros materiais”, afirma Lucas Lassen, curador e diretor da Paiol, marca de objetos artesanais que reúne mais de 50 moringas em seu acervo.
Apresentando propriedades físicas variadas, as moringas costumam ser impermeáveis, resistentes ao fogo até 1000°C e quimicamente neutras. Além disso, proporcionam isolamento térmico e resfriamento, tornando-as ideais para armazenar água, conservar bebidas e, sobretudo, decorar. Seus benefícios para a saúde incluem redução do consumo de plásticos, ausência de substâncias tóxicas e conservação de nutrientes. Essas características tornam as moringas de barro uma opção prática, ecológica e culturalmente relevante.
No principal pólo cerâmico das Américas, em Maragogipinho, na Bahia, as peças têm influências dos três povos formadores da nossa identidade – Penellope Bianchi
Ainda de acordo com Lassen, a possibilidade de percorrer as diferentes regiões lhe deu a chance de perceber claramente como um mesmo objeto, com o mesmo objetivo, é capaz de refletir as características materiais e culturais de cada local. Da Bahia, por exemplo, o destaque fica para Maragogipinho, vilarejo da cidade de Camaçari, tido como o maior polo cerâmico da América Latina. De cor naturalmente avermelhada por conta do barro conhecido como Tauá, as peças – quase sempre utilitárias – têm influência majoritariamente de comunidades indígenas da região. Porém, o estilo adotado hoje na região também teve contribuições europeias e de africanos e quilombolas que se estabeleceram na região. Os motivos florais aparecem com frequência não só em moringas, mas também em panelas, vasilhas, estatuetas, peças decorativas e louças.
A etnia Kiriri é um dos povos indígenas da Bahia que produzem moringas a partir do barro – FOTO Penellope Bianchi
Também da Bahia, no povoado de Pau Ferro, pertencente ao município de Palmeiras, indígenas da etnia Kiriri são reconhecidos pela sua diversidade artesanal com diversos materiais. A partir do barro, eles produzem peças utilitárias, dentre elas as moringas. Assim como nas peças de Maragogipinho, elas também recebem grafismos feitos a partir de pigmentos naturais, desenvolvidos a partir da argila Tabatinga, que costuma ser encontrada em rios e locais úmidos e costumava ser utilizada no acabamento de casas de pau a pique.
No norte de Minas Gerais, entre os rios Itacarambi e Peruaçu, região que compartilha características parecidas com o semiárido e a caatinga nordestina, a produção cerâmica também se encontra entre as mais representativas das Américas. Também de origem indígena, Nei Leite, da etnia Xakriabá, cria moringas zoomórficas inspiradas na fauna e na mitologia de seu povo, representando onças, peixes, tatus, cobras, seriemas, gaviões, entre outras. Na crença Xakriabá toda vez que o gavião coã canta é sinal de que alguém irá morrer. Todas as suas peças recebem pigmentos naturais que puxam para a terracota, o ocre, entre outros tons.
Mantendo a tradição indígena de inspiração nos elementos da natureza, Nei Leite, da etnia Xakriabá, faz peças zoomórficas com símbolos da fauna de sua região – FOTO Penellope Bianchi
No Vale do Jequitinhonha, no nordeste de Minas, grandes mestres artesãos também tem suas moringas tradicionais, chamadas por lá de botijas. O formato mais popular tem uma ponta fina, base arredondada, tampa e é acompanhada de um copo e um prato. “O que traz identidade a cada uma delas é o estilo de cada artesã. Utilizando pigmentos naturais produzidos a partir de diferentes tonalidades de barro, há peças feitas com pingos, outras com arabescos, outras com motivos florais, mas sempre seguindo as mesmas técnicas tradicionais”, afirma o curador.
Por lá, as famosas bonecas, popularizadas sobretudo pela mestre Dona Isabel, partem da estrutura básica de uma moringa. “Esta é uma característica específica só encontrada no Vale que é a adaptação da estrutura base da moringa para a criação de bonecas de barro. É por isso que as cabeças das bonecas saem, por exemplo”, ressalta Lassen que destaca também o trabalho de artesãs que extrapolam os formatos tradicionais, como Irene Gomes da Silva, com a Moringa em formato de Noiva, e a Adriana Gomes, com as moringas em formato de cactos.
A moringa Noiva é um das peças que fogem ao tradicional modelo do Vale do Jequitinhonha – que pode ser vista ao meio – e a moringa Cacto já uma produção mais recente – FOTO Paiol e Penellope Bianchi
Outra região mineira que também tem destaque na produção de moringas é a cidade de Santa Rita, situada a 30km de Ouro Preto. Conhecida como a capital mundial da pedra sabão, a cidade conta com artesãos que produzem panelas, copos, jarras e moringas. O povoado foi fundado no século XVIII por bandeirantes em busca de ouro. O local não era rico em metais preciosos, mas os colonos encontraram a esteatita (pedra sabão), muito abundante na região. Assim, o bordado em pedra sabão, original e de padrão único, ganhou notoriedade internacional. Seu formato também segue um padrão com gargalo mais fino, base oval e um copo no mesmo material que serve como tampa.
Em Santa Rita, a pedra sabão ganha versões lisas ou com pinturas, quase sempre com motivos florais – FOTO Penellope Bianchi
O território brasileiro ainda abrange muitas outras regiões importantes na produção de moringas como em Passagem, na Bahia, Cascavel, no Ceará, Tracunhaém, no Pernambuco, passando por várias comunidades onde a cerâmica é parte da tradição artesanal e das vivências locais. “Embora este seja apenas um recorte de algo que é muito maior, eu espero que com a renovação das gerações, nós possamos ver novas produções que prolonguem e mantenham vivas as riquezas da nossa produção cerâmica, sobretudo das moringas, objetos que estão diretamente ligadas à nossa cultura popular e à nossa identidade enquanto povo”, finaliza Lucas.
Todas as peças podem ser encontradas em www.lojapaiol.com.br
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Angelo Miguel Oliveira Lima
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